quarta-feira, 22 de abril de 2015

ritual.

 
     
     Ela apagava o cigarro, lavava os dentes e esperava. Depois de meia hora, ele continuava sem aparecer. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. Lia um livro e bebia água. Nem sinal dele. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. Olhava para o tecto e fazia zapping na TV. Uma hora depois a campainha continuava sem tocar. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. O ritual repetia-se, no geral, umas 5 vezes. Era assim todas as quartas-feiras. Ele demorava, mas nunca falhava ao encontro. 
     Pousava o casaco e a mala do portátil em cima do cadeirão e só depois a cumprimentava. O cumprimento era sempre o mesmo, afagava-lhe os cabelos e deslizada a mão pelo ombro até ao cotovelo. Falavam sobre meia dúzia de banalidades, mas nada de muito profundo e comprometedor. Ambos sabiam que era assim que funcionava: um dia por semana, 4 vezes por mês, sem grandes conversações e sem grandes intimidades além das físicas. Sem cobranças, sem telefonemas fora de horas, sem compromissos sociais e sem obrigações. 
      Normalmente faziam uma refeição leve que ela preparava em menos de 30 minutos e bebiam um vinho que ele trazia, sempre tinto e sempre diferente. Depois disto deixavam-se estar no sofá em silêncio por um bom bocado enquanto a música continua a tocar baixinho. Era como se fosse uma preparação para o que se ia passar a seguir. Era ele quem tomava a iniciativa dirigindo-se para o quarto, ela ia atrás devagar como se abrandar o passo fosse transmitir-lhe que aquilo não passava apenas de uma sessão de sexo. Na verdade, ela sentia muito mais do que isso. Ela sonhava com o dia em que ele ia entrar naquela casa e diria que ia começar a encontrar-se com ela mais vezes porque simplesmente lhe fazia falta dividir o mesmo espaço, o mesmo oxigénio e o mesmo suor por mais tempo. Era esta a sua visão romântica e utópica da coisa. O seu lado racional dizia-lhe: "Homens como estes não se prendem. Não querem construir nada a não ser uma conta no banco e uma casa de férias". E era verdade. Ele era assim. Sem tirar nem pôr. Ele até podia apresentá-la à família e aos amigos, mas isso não ia tornar o caso mais sério. Nem sequer sabia se queria filhos quanto mais pensar em escolher uma mãe para eles e alguém com quem dividir o resto dos cereais, contas ou problemas e dores de cabeça.
     Aumentar a frequência dos encontros era deixar naquela mulher uma esperança ainda maior do que aquela que ela já escondia nos seus pensamentos. Ele não queria ter de chegar ao ponto de ter de lhe dizer: "Acabou". Isso daria muito trabalho. Ele preferia manter a distância a ter de um dia tomar uma atitude mais drástica. Parecia mais fácil e ela não dava mostras de ser problemática.
      E assim, como sempre, ele saía de fininho depois dela ter adormecido para não ter de se despedir. Sempre odiara as despedidas e tinha medo do que ela poderia dizer nesse momento de fragilidade.



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