terça-feira, 30 de junho de 2015

a última festa.



      Eram 21:22 quando chegou a casa e reparou nas horas no relógio do micro-ondas. Estava exausta, esfomeada e a precisar de um banho para se limpar de tudo que se tinha passado naquele dia avassalador. 
      Ligou a televisão e estava outra vez a dar aquele filme, parecia uma praga e talvez fosse um sinal de qualquer coisa que não sabia identificar. A verdade é que cada vez que tinha um dia péssimo e chegava a casa mais para lá do que para cá, aquele filme estava ali a dar como se estivesse à sua espera.
     Começou a sentir uns suores estranhos. Não seria do calor, afinal de contas estava um dia de Outono e o tempo tinha começado a arrefecer há duas semanas. Além dos suores, apoderava-se dela uma náusea que teimava em não passar e que bem se podia dever ao facto de ter estado umas 6 horas sem meter nada na boca. Desistiu do filme e desligou a TV. Já na cozinha bebeu um copo de água gelada e mastigou uma banana. Caiu na cama de camisola e cuecas e adormeceu profundamente.
     Eram 4:00 da manhã quando o seu coração parou. Olhos fechados, cabelos despenteados sobre os lençóis brancos. O seu corpo ficou gelado. E quantos mais minutos passavam mais roxa se tornava toda a sua pele branca. O despertador tocou às 7:40 e assim ficou até serem 9:30 quando chegou a Dona Elvira e viu a "menina" morta e desnuda da cintura para baixo. 
     Seguiu-se o processo normal. Estava na morgue passadas algumas horas. Aliás, estava o seu corpo desta vez completamente nu e cada vez com pior aspecto. Ela estava a ver aquilo tudo como se já não pertencesse mais àquele monte de ossos, músculos e pele. De facto não pertencia, agora era algo que nem ela conseguia qualificar e só de imaginar o que lhe tinha acontecido apetecia-lhe pegar no telemóvel e mandar uma mensagem para o seu grupo de amigos onde escreveria: "Eu morri malta, mas vocês nem imaginam o que aconteceu depois. Eu consigo ver-vos e sei de tudo que se está a passar agora convosco, enquanto pensam no meu funeral e escrevem cartas de despedida para ler na minha hora fúnebre. Ah e a morte parece que me emagreceu um pouco, estou gira para quem faleceu há menos de um dia."
     Não o pode fazer, por isso fica atenta a todo o ritual que se segue depois de a terem dissecado e cosido de forma a evitar o transtorno por parte das pessoas que a verão num caixão. Deixaram-na bonita até, vestida de branco e com os cabelos penteados. "De quem seria a ideia de me colocarem umas pérolas brancas nas orelhas se eu nunca uso brincos desse tipo?", pensou. Ainda assim achou-se bem melhor do que em alguns dias de quando ainda estava viva.
     São três da tarde e a igreja começa a encher. O funeral marcado para as 15:30 foi na igreja onde a batizaram, fará 32 anos no próximo mês. Achou o facto curioso. Sentou-se ao lado da mãe que não chorava, mas tinha a expressão mais dolorosa que alguma vez vira em alguém. Apeteceu-lhe afagá-la e beijar-lhe as mãos, mas já não podia. Na terceira fila estavam as duas melhores amigas, as que nunca a tinham abandonado em nenhuma circunstância e que escreveram cartas de despedida que não conseguirem ler. Não sabia bem o que estava a sentir naquele momento, mas estava a concretizar o seu maior medo: morrer e deixar os que amava a sofrer pela sua partida. O que a assustava não era morrer, nem tão pouco ter uma morte dolorosa, era saber que ficariam a chorar por ela. 
     Concentrou-se na "plateia", sexta fila de bancos e lá estavam as colegas do trabalho. Invejosas e falsas era o que achava delas e por isso jamais imaginara que viriam ao seu funeral chorar por uma coisa pela qual não tinham qualquer tipo de carinho, quanto mais empatia. Só podia ser para a fotografia, pensou.
      A mãe levantou-se e agarrou-se ao seu caixão onde chorou durante tanto tempo que ela não conseguiu contar. Beijou-a na face gélida e seca e depois disso resignou-se como se tivesse terminado o ritual de despedida. Não a quis ver a ser enterrada, a sua menina era demasiadamente especial para a imaginar a ser comida pela terra e pelos bichos. Conservou assim a sua imagem: branca e imaculada.
     Mas a hora da verdade estava prestes e chegar. Quase que podia sentir a terra a cair no caixão e o cheiro a bafio. Ali estava ela prestes a terminar como terminamos todos. Mais um tempo e seria apenas um espaço oco dentro de um caixão lacado e forrado de tecido branco.

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